Em decisão inédita no Estado de Mato Grosso do Sul, o Ministério Público obteve a condenação de um homem por crime de racismo e ódio contra nordestinos praticado em publicações feitas por meio de rede social. A sentença foi proferida pela 1ª Vara Criminal de Dourados. Esta decisão representa um marco legal no combate ao discurso de ódio com base na procedência regional.
A ação penal foi movida pelo promotor de Justiça João Linhares, da 4ª Promotoria de Justiça de Dourados, após a veiculação de mensagens ofensivas no perfil pessoal do réu no Instagram, em outubro de 2022. As postagens incitavam o preconceito e a discriminação contra a população nordestina, exemplificando ódio contra nordestinos. Elas sugeriam que essa parcela da população seria responsável pelo resultado do pleito presidencial daquele ano.
Entre as frases publicadas estavam declarações como: “O Nordeste merece voltar a carregar água em baldes mesmo” e “Você ainda vai comer muita farinha com água pra não morrer de fome”. Tais manifestações, segundo a denúncia, tinham o objetivo claro de inferiorizar uma coletividade em razão de sua origem geográfica.
Racismo por procedência nacional
O réu foi condenado com base no artigo 20, §2º, da Lei nº 7.716/89. Esta lei trata de crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Foi alterada para abranger também discriminação por etnia, religião ou procedência nacional, inclusive em meios digitais. A pena de dois anos de reclusão foi substituída por medidas restritivas de direitos, conforme prevê a legislação penal brasileira.
Durante a fase de instrução processual, o acusado admitiu ser o autor das publicações, mas alegou que não teve a intenção de promover o preconceito. Contudo, o juízo considerou que as declarações extrapolaram o limite da liberdade de expressão, caracterizando discurso de ódio com potencial ofensivo coletivo devido ao ódio contra nordestinos.
Em sua manifestação, o promotor João Linhares destacou que a decisão tem caráter pedagógico. Ela reforça a importância do enfrentamento à intolerância no ambiente digital. “Quando alguém deprecia e despreza outrem em razão de sua procedência nacional, de seu Estado ou região de origem, também incorre em racismo. Tal conduta é inadmissível numa democracia. Espero que este caso sirva sobretudo para fomentar o debate público, a reflexão e também como efeito pedagógico e dissuasório”, afirmou.
Liberdade de expressão tem limites
A sentença judicial reforça que a liberdade de expressão, embora fundamental, não pode ser utilizada como escudo para manifestações preconceituosas oriundas de ódio contra nordestinos. Segundo a decisão, “a publicação foi totalmente dissociada de crítica racional ou civilizada. Ela representa afronta direta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade”.
O promotor também abordou, na denúncia, a importância da liberdade de expressão no contexto democrático. Ele destacou que discursos de ódio — como os de natureza nacional, racial, religiosa ou sexual — ferem direitos fundamentais e podem, sim, ser alvo de sanção penal. “Emerge de todo o conteúdo constitucional e democrático a observância de parâmetros igualitários e de proibição às discriminações desarrazoadas, fundadas no ódio e na intolerância”, pontuou Linhares.
Apesar da condenação penal, o pedido do MPMS de indenização por danos morais coletivos foi indeferido pelo juiz da causa. A justificativa foi a alegação de falta de elementos concretos que pudessem mensurar o dano. No entanto, a sentença abriu possibilidade para que ações cíveis individuais sejam ajuizadas por pessoas que se sintam atingidas pelas declarações.
Segundo o promotor, essa é a primeira condenação judicial por racismo contra nordestinos registrada no Estado. Isso evidencia um avanço no reconhecimento jurídico da discriminação por origem regional, frequentemente naturalizada ou subnotificada perante atos de ódio contra nordestinos.